Quando partes inteiras da população enfrentam violência sistemática, deslocamento, destruição material e morte, surge uma urgência ética: como dar voz ao que parece incompreensível? Como memorializar sem neutralizar a dor, como denunciar sem estetizar o genocídio? A arte, nos seus múltiplos formatos — pintura, desenho, ilustração, performance, instalações, artes digitais — tem se colocado como instrumento crítico, de resistência e de testemunho em Gaza.
O que consideramos “genocídio”
Antes de tratar da arte, é importante situar o conceito. Genocídio, segundo a Convenção de 1948, envolve atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. A disputa em torno da aplicação desse rótulo a conflitos contemporâneos é intensa: envolve evidências, direito internacional, ética, além de representações simbólicas. Muitos artistas em Gaza, e fora dela, afirmam que certas práticas (bombardeios de áreas civis, destruição de infraestrutura, fome, impedimento de ajuda humanitária, deslocamentos forçados) se aproximam ou configuram genocídio. A arte passa a ser espaço de confirmação — de que aquilo que muitos negam é vivido por muitos outros.
Arte como denúncia, memória e humanidade
1. Denúncia e visibilidade
* Artistas transformam materiais cotidianos — sacos de farinha da ONU, caixas de ajuda humanitária, destroços — em telas de sofrimento, rostos de mortos, casas destruídas. ([Al Jazeera][1])
* Por exemplo, o pintor argelino Aboulhak Abina retrata crianças palestinas mortas para impedir que sejam esquecidas. Cada retrato carrega não apenas dor, mas também o apelo moral para que o mundo “veja”. ([Daily Sabah][2])
* Grupos de jovens crianças internadas em clínicas, como em al-Mawasi, usam o desenho como forma de externar o trauma que testemunharam — bombardeios, perdas, medo. ([Press TV][3])
2. Resistência simbólica
* Mesmo sem acesso a materiais artísticos tradicionais, artistas em Gaza improvisam. Um exemplo: usar caixas de ajuda alimentar ou materiais de embalagem para criar imagens que expressam a dor, a ruína, mas também a persistência. ([Al Jazeera][1])
* Há também iniciativas externas de solidariedade, exposições fora de Gaza, para mostrar essas obras, dar visibilidade internacional. ([Anadolu Ajansı][4])
3. Memória e identidade
* Preservar rostos, nomes, histórias — contra a anonimização da vítima que frequentemente ocorre nas coberturas midiáticas superficiais. A arte funciona como arquivo vivo: tela, cerâmica, fotografia, ilustração são marcas de existência. ([Daily Sabah][2])
* A destruição de museus, galerias, espaços culturais também faz parte do assalto não só ao corpo, mas à memória coletiva. ([Wikipedia][5])
Desafios e tensões
a) Estética e representação do horror
Há um risco constante de que o horror seja estetizado — transformado em imagem “interessante” mas desprovida de profundidade ou contexto. Como representar dor sem torná-la espetáculo? Como equilibrar o respeito pelas vítimas, evitando voyeurismo? Alguns críticos dizem que certas imagens suavizam ou dessensibilizam — ou que sequer chegam a mostrar a violência crua, por autocensura ou por imposição institucional.
b) Censura, silenciamento e discursos artísticos
* A autora Rana Anani, por exemplo, argumenta que muitas instituições ocidentais afirmam apoio à “diversidade” ou “descolonização” no campo das artes, mas cancelam ou excluem artistas palestinos ou defensores que denunciem o que consideram genocídio. ([Institute for Palestine Studies][6])
* Há também repressão mais direta em Gaza: destruição de estúdio, falta de acesso a internet, dificuldades de transporte de obras, de exposição. Consumir arte em Gaza é também enfrentar obstáculos práticos severos. ([Wikipedia][7])
c) Legitimidade e contestação
* Nem todo mundo aceita que o termo “genocídio” deva ser aplicado — isso gera debates legais, políticos, morais. A arte se insere nesse debate, não apenas refletindo mas provocando: ao usar esse termo, ao alegar, ao denunciar.
* As reações institucionais ou estatais muitas vezes pressionam para que as representações sejam “equilibradas”, “justas” ou “neutras”, o que pode silenciar a potência radical da acusação e da dor.
Impacto social e político
* Internamente, a arte ajuda à sobrevivência psicológica: permite às pessoas expressar, processar, lembrar, resistir.
* Fora de Gaza, as obras formam parte de campanhas de solidariedade, mobilização política, sensibilização de públicos que de outra forma estariam isolados da experiência vivida.
* A arte também questiona narrativas dominantes nos meios de comunicação: o que é mostrado, o que é omitido, quem é retratado, quem é silenciado.
Exemplos notáveis
Mahasen al-Khateeb**, artista palestina de Jabalia, que denunciou por meio de ilustração e design o horror vivido, até sua morte em bombardeio. ([Wikipedia][7])
A exposição GAZA por Antoine Janot** no P21 Gallery, que busca confrontar o público com a crise humanitária em andamento. ([p21.gallery][8])
Narrativas e proximidades temáticas** como “Gaza and a Visual Narrative of Resisting Silence”, ensaio de Rana Anani que analisa como artistas palestinos enfrentam o apagamento — físico, cultural e simbólico — dentro e fora de Gaza. ([Institute for Palestine Studies][6])
Possíveis caminhos e ética da arte em situação extrema
* A arte em contexto de genocídio precisa de ética: de quem vê, de quem expõe, de quem financia. Deve haver cuidado para que não haja exploração da dor.
* Transparência: dizer quem é o artista, quem foi afetado, qual o contexto, para evitar que o público interprete fora da realidade ou banalize a experiência.
* Colaboração e agência local: dar voz aos próprios palestinos, às pessoas em Gaza, permitindo que sejam protagonistas de suas narrativas, e não meros objetos de pena ou curiosidade.
Conclusão
Em situações extremas como a que muitos descrevem em Gaza, a arte é mais que simples representação — é ação. Ela testemunha, denuncia, preserva memória e identidade, desafia o poder através da visibilidade, preserva o humano diante da desumanização. Embora insuficiente para impedir as mortes ou parar bombas, a arte ajuda a sustentar algo que muitos sistemas tentam apagar: a dignidade, a existência, o corpo coletivo de lembrança.
LATAMARTE
Fontes
[1]: https://www.aljazeera.com/features/2025/2/12/art-as-survival-gazas-creators-transform-pain-into-protest?utm_source=chatgpt.com "Art as survival: Gaza’s creators transform pain into protest | Israel-Palestine conflict | Al Jazeera"
[2]: https://www.dailysabah.com/arts/algerian-artist-transforms-gazas-pain-into-powerful-portraits/news?utm_source=chatgpt.com "Algerian artist transforms Gaza’s pain into powerful portraits | Daily Sabah"
[3]: https://www.presstv.ir/Detail/2024/08/28/732236/israeli-genocide-gaza-drawings-children-palestine?utm_source=chatgpt.com "Art and trauma: Israeli genocide in Gaza through eyes of Palestinian children"
[4]: https://www.aa.com.tr/en/asia-pacific/resistance-and-resilience-artists-honor-palestinians-facing-horrors-of-israel-s-gaza-genocide/3384990?utm_source=chatgpt.com "Resistance and resilience: Artists honor Palestinians facing horrors of Israel’s Gaza genocide"
[5]: https://en.wikipedia.org/wiki/Al_Qarara_Cultural_Museum?utm_source=chatgpt.com "Al Qarara Cultural Museum"
[6]: https://www.palestine-studies.org/en/node/1657056?utm_source=chatgpt.com "Gaza and a Visual Narrative of Resisting Silence | Institute for Palestine Studies"
[7]: https://es.wikipedia.org/wiki/Mahasen_al-Khatib?utm_source=chatgpt.com "Mahasen al-Khatib"
[8]: https://p21.gallery/artists/gaza-by-antoine-janot?utm_source=chatgpt.com "P21 Gallery - GAZA by Antoine Janot"