Como o modernismo chega aqui? Conversamos com Sabrina Moura para discutir se nós também já éramos modernos ou se, talvez, nunca tenhamos sido
No nosso último episódio traçamos uma espécie de genealogia da arte moderna – de um lado, o processo de industrialização, a ideia de progresso e desenvolvimento tecnológico, a consolidação dos centros urbanos; do outro, artistas que buscavam cada vez mais uma linguagem singular, que queriam desafiar os preceitos tradicionais da academia, que desejavam liberdade para novas formas de pintar. Dessa conjunção de elementos surge o impressionismo, centrado na figura de Édouard Manet, e com ele o estopim para toda uma nova série de novos movimentos artísticos e estéticos que se estendem nas últimas décadas do século XIX até o início do século XX. O que tem início com o impressionismo se desdobra em incontáveis efeitos colaterais, com a sucessão do que chamamos de vanguardas – estilos diferentes que pipocam pela Europa nos cem anos seguintes.
Estaríamos fadados à cultura da repetição?
E aí vem a nossa pergunta: O que acontecia enquanto isso no que chamamos de América Latina? Qual o papel da América Latina na modernidade? Como a arte modernista chega na América Latina? Ela de fato chega aqui ou nós também já éramos, de certa forma, modernos? Ou nunca fomos modernos? Por que olhamos tanto para a Europa como referência e padrão de visualidade?
Desde os tempos da colonização européia, a principal marca da nossa marginalização política, econômica e social, é a ausência da América Latina na história da arte universal. Segundo uma perspectiva de muitos pensadores eurocêntricos, nós, latino-americanos, estamos fadados a ser eternamente uma “cultura de repetição”, reprodutora de modelos, não nos cabendo fundar ou inaugurar estéticas ou movimentos que poderiam ser incorporados à arte universal.
O próprio termo América Latina serve para atrapalhar essa visão, pois refere-se amplamente aos países da América, incluindo o Caribe, cujas línguas derivam do Latim. No entanto, no Suriname, por exemplo, fala-se holandês, assim como nas Bahamas e na Jamaica fala-se inglês. Também não existe uma justificativa geográfica para o termo, pois não estamos falando estritamente do Sul, já que o México, por exemplo, já figura no que chamamos de América do Norte. Por isso, esse termo hoje é considerado muito problemático e impreciso, já que, em teoria, criaria uma identidade que, na verdade, reúne países muito diferentes entre si…
Por outro lado, existe uma experiência comum, do México à Argentina, que pode unir essas nações tão diversas: fomos todos sujeitos às conquistas coloniais, à escravização de povos africanos, ao extermínio dos povos locais e ao imperialismo que até hoje mantém a região – mesmo porque os efeitos desses processos são sentidos até hoje, no continente todo. Tratam-se de países com uma preocupante exploração ambiental e intenso desmatamento; nações produtoras rurais e sem desenvolvimento industrial ou de serviços; regiões marcadas pelo autoritarismo, populismo, desigualdade brutal – onde a miséria vive lado a lado com e riqueza acumulada em proporções inacreditáveis.
Walter Mignolo, um importante pensador argentino sobre a ideia de “latinidade”, diz que a “ideia” de América Latina é uma triste celebração por parte das elites “criollas” – descendentes de europeus nascidos por aqui – de sua inclusão na “modernidade”, ou seja, no processo de desenvolvimento tecnológico da industrialização, da expansão urbana, do êxodo rural, da “erudição” dos artistas! Mas a realidade é que essas elites se afundaram mais e mais na lógica da colonialidade.
A palavra “latinidade” englobava uma ideologia na qual se incluía a identidade das antigas colônias espanholas e portuguesas na nova ordem de um mundo moderno/colonial europeu. Ao pensar que arte moderna surge em meados do século 19, não podemos deixar de notar que ainda havia, no mundo, muitos países recém independentes ou que ainda eram colônia – pense em incluindo Cuba e Panamá e a maioria dos países da África que conquistaram suas independências apenas nos últimos 40 a 60 anos.
A verdade é que, por muito tempo, a História da Arte oficial nem sequer se considerou que pudesse existir uma arte Latino-americana independente, viva, válida. Em seu texto para a primeira Bienal do Mercosul, Frederico Morais relembrou uma frase infame de Henry Kissinger, que foi Secretário de Estado dos Estados Unidos entre 1973–1977: Nada de importante pode vir do Sul. A história nunca é feita no Sul. Só que a gente sabe que isso não é verdade – não foi verdade, e continua não sendo.
Essa narrativa é reforçada pela história da arte oficial, na qual consta que a modernidade chega na América por meio de artistas que – na falta de academias de arte, da abundância de colecionadores e patronos, de interesse por parte do governo e da população – viajavam para a Europa para estudar e, impactados pelas vanguardas que testemunharam, exposições que visitavam, artistas que conheciam. Eles voltavam para casa carregando essas referências na mala. Desta forma, a modernidade na América Latina, de um lado, é escrita como devedora da modernidade europeia, reiterando essa visão de que estamos fadados à repetição, e do outro, como uma caldeirão de misturas vibrantes, capaz de inventar sua própria modernidade.
Mas seria esta a resposta correta? A verdade é que, industrialmente, a América Latina realmente sofre com a demora da modernização não só pela colonização, mas por processos de independências bastante retrógradas em algumas regiões (apesar das potentes transformações de Simon Bolívar e José de San Martin).
Historicamente, sabemos que a ideia de arte moderna foi sim importada de um lado, mas culmina numa contradição – a arte moderna latino-americana é, também, uma primeira tentativa de construção de identidades estéticas e culturais locais, regionais, que seriam erguidas não apenas sobre padrões visuais europeus, mas também sobre revisões do passado pré-colonial, sobre uma ideia de identidade nacional, buscando uma outra genealogia para a produção artística. A arte europeia pressupõe-se a si mesma como arte universal, e nós podemos ou integrá-la como aprendizes, ou seremos marginalizados (como aconteceu por muito tempo).
Hoje, no entanto, já é possível traçar como a modernidade européia é só uma parte da história e como nós temos não só artistas, como também arte, isto é teorias, estéticas. Teorias que não se aplicam só ao contexto latinoamericano, mas que podem servir como instrumentos indispensáveis à compreensão de todo o processo da arte moderna e contemporânea. O caminho reverso, inclusive, é possível!
Talvez tenhamos demorado algumas décadas para alcançar o calendário de vanguardas europeias, mas isso não significa que o que veio depois é apenas repetição, imitação, derivação. Só que existem outros desafios ao contar essa história. Acontece que: Brasil, Peru, Chile e Argentina não compartilham os mesmos antecedentes de modernidade, modernização ou modernismo. De acordo com Nelly Richard, pesquisadora e teórica chilena, o desenvolvimento das tendências culturais nesses e em outros países não foi homogêneo, nem uniforme, e a disposição de cada um para a modernidade seguiu dinâmicas regionais de forças e resistências específicas, não comparáveis. Alguns países, por exemplo, estabeleceram graus maiores ou menores de valorização da cultura indígena herdada – como é visível na modernidade mexicana.
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